As curvas do Direito Penal.
O Senhor Opus pulara do
alto de um prédio de 10 andares, pretendendo se suicidar. Ele deixou uma nota
de suicídio confirmando sua intenção. Mas quando estava caindo, passando pelo
nono andar, Opus foi atingido por um tiro de espingarda na cabeça, que o matou
instantaneamente.
O que Opus não sabia era que uma rede de segurança havia sido
instalada um pouco abaixo, na altura do oitavo andar, a fim de proteger alguns
trabalhadores, portanto Ronald Opus não teria sido capaz de consumar seu suicídio
como pretendia. Normalmente, quando uma pessoa inicia um ato de suicídio e
consegue se matar, sua morte é considerada suicídio, mesmo que o mecanismo
final da morte não tenha sido o desejado. Mas o fato de Opus ter sido morto em
plena queda, no meio de um suicídio que não teria dado certo por causa da rede
de segurança, transformou o caso em homicídio.
Quando acusado de assassinato, tanto o marido quanto a
esposa foram enfáticos ao afirmar que a espingarda deveria estar descarregada.
O velho disse que ele tinha o hábito de costumeiramente ameaçar sua esposa com
a espingarda descarregada durante suas discussões. Ele jamais tivera a intenção
de matá-la. Portanto, o assassinato do Senhor Opus parecia ter sido um
acidente; quer dizer, ambos achavam que a arma estava descarregada, portanto a
culpa seria de quem carregara a arma.
A investigação descobriu uma testemunha
que vira o filho do casal carregar a espingarda um mês antes. Foi descoberto
que a senhora havia cortado a mesada do filho e ele, sabendo das brigas
constantes de seus pais, carregara a espingarda na esperança que seu pai
matasse sua mãe. O caso passa a ser, portanto, do assassinato do Senhor Opus
pelo filho do casal.
Agora vem a reviravolta surpreendente. As investigações
descobriram que o filho do casal era, na verdade, Ronald Opus. Ele
encontrava-se frustrado por não ter até então conseguido matar sua mãe. Por
isso, em 23 de março, ele se atirou do décimo andar do prédio onde morava,
vindo a ser morto por um tiro de espingarda quando passava pela janela do nono
andar. Ronald Opus havia efetivamente assassinado a si mesmo, por isso a
polícia encerrou o caso como suicídio.
Como
resolver o caso em Direito Penal?
1.
Ronald Opus cometeu tentativa de homicídio contra sua mãe (3), extinta, porém,
a punibilidade pela sua morte (Código Penal, art. 107, I). (4) Houve erro
dolosamente provocado por terceiro com aberratio ictus.
2.
Abstraindo as questões da posse anterior da arma de fogo descarregada em
relação ao pai de Ronald, se tinha ou não registro, e as ameaças por ele
proferidas contra sua esposa, verifica-se que ele (o pai), por "erro de
tipo determinado por terceiro" (5), qual seja, o próprio filho,
acreditando que a espingarda estivesse descarregada, atirou na sua direção (6),
não acertando o alvo (autoria mediata por erro de tipo invencível). Por erro na
execução (7), atingiu Ronald, vindo a lhe provocar a morte.
3.
Não ocorreu homicídio doloso consumado, levando em conta que na aberratio
ictus são exigidos três protagonistas: autor, vítima virtual e vítima
efetiva. Assim é que de acordo com o art. 73 do CP, quando, por erro no emprego
dos meios executórios, o autor (primeiro personagem), ao invés de atingir a pessoa
que pretendia ofender (segundo personagem: vítima virtual), ofende pessoa
diversa (terceiro protagonista: vítima efetiva), responde como se tivesse
praticado o crime contra aquela (vítima virtual). Ronald não poderia ser ao
mesmo tempo autor e vítima efetiva. Seria estranho que, em um homicídio doloso,
a mesma pessoa fosse sujeito ativo e passivo.
4.
Não teria ocorrido homicídio doloso consumado, uma vez que, de acordo com o
art. 73 do CP, o agente responde pelo delito como se tivesse atingido a vítima
que pretendia ofender? Como Ronald desejava matar a própria mãe, não seria irrelevante
o fato de o projétil ter atingido a si mesmo, pois a lei determina que, no
"erro na execução", sejam consideradas as circunstâncias pessoais da
vítima virtual (sua mãe) e não da vítima efetiva (ele próprio) (8)? Não
deveríamos abstrair a condição de autor da vítima efetiva, dando relevância à
sua morte, o que conduziria ao homicídio doloso consumado? Não cremos, pois a
regra do art. 20, § 3.º, 2.a.parte, mandada observar pelo art. 73,
diz especialmente respeito à dosagem da pena, cuidando de condições e
qualidades da vítima virtual.
5.
Há outro argumento no sentido da inexistência de homicídio doloso consumado.
Ocorre que o princípio do art. 73 do CP, segundo o qual, na aberratio ictus
com resultado único, em se tratando de homicídio, vindo a vítima efetiva a
falecer, o autor responde pelo fato como se tivesse causado a morte da vítima
virtual, não pode conduzir à responsabilidade penal objetiva, em que é
suficiente o nexo material. Para que a morte da vítima efetiva seja atribuída à
conduta do autor (ou provocador, no caso) a título de dolo, é necessário que
haja integrado a esfera de seu conhecimento e vontade. Como diz silva sánchez,
tratando do erro na execução com evento único, para que haja responsabilidade
por crime doloso consumado é preciso "que o resultado seja fiel reflexo do
injusto doloso do comportamento", manifestando-se como "exata
realização do risco abarcado pelo dolo e não de outro risco presente na ação do
sujeito" (9). O art. 73 do CP deve ser interpretado à luz do art. 18, I e
II (10).
6.
Quando houve o disparo era absolutamente imprevisível a presença de Ronald na
altura da janela. Assim, se a morte da vítima efetiva era absolutamente
imprevisível, ausente a imputação objetiva, o autor, no caso o próprio Ronald,
não podia ser responsável doloso ou culposo por ela, subsistindo somente a
tentativa de homicídio contra sua genitora.
8.
Entre nós, o suicídio é impunível (tentado ou consumado).
9.E
a presença da rede no 8.º andar? Sem ela, poder-se-ia dizer que o tiro recebido
por Ronald não tinha sido causal, nos termos do art. 13, caput, do CP,
uma vez que ele morreria da mesma forma (13). Isso, contudo, segundo nossa
opinião, é irrelevante, uma vez que entendemos ter ocorrido apenas tentativa de
homicídio.Notas
1.
Fato fictício. A redação foi alterada pelo autor.
2.
Ele havia deixado um bilhete relatando essa intenção.
3.
Agravada genericamente a pena em face da circunstância da relação de parentesco
(Código Penal, art. 61, II, e). Poder-se-ia apreciar a incidência da
qualificadora da vingança como motivo torpe, discutível na jurisprudência
(JESUS, Damásio de. Código Penal anotado. 13a. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 401; MIRABETE, Júlio Fabbrini.Manual de Direito Penal:
Parte Especial. São Paulo: Atlas, 2000. vol. 2, p. 70).
4.
Pressupondo que o fato tivesse ocorrido no Brasil.
5.
CP, art. 20, § 2º: "Responde pelo crime o terceiro que determina o
erro".
6.
Consta da narrativa que o pai de Ronald "estava tão nervoso que, ao puxar
o gatilho, errou o alvo, sua esposa". Logo, ele acionou a arma na direção
da vítima.
7.
Art. 73 do CP (aberratio ictus): "Quando, por acidente ou erro no
uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia
ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime
contra aquela". É como se o próprio Ronald Opus estivesse atirando na mãe.
8.
CP, arts. 20, § 3.º e 73, primeira parte, in fine.
9.
SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Aberratio ictus y imputación objetiva. In:
Consideraciones sobre la teoría del delito. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1998.
p. 171. Vide sobre o assunto: JESUS, Damásio de. Imputação objetiva.
2.a. ed. São Paulo: Saraiva 2002. p. 150. A morte de Ronald era
imprevisível por parte do autor imediato (seu pai), por isso não se
relacionando a dolo ou culpa.
10.
O art. 18 do CP disciplina o dolo e a culpa.
11.
Ele tinha "o antigo hábito de ameaçar a esposa com a arma
descarregada".
12.
Entendemos tratar-se de erro provocado inevitável, excludente de culpa do autor
imediato, o pai de Ronald (DELMANTO & DELMANTO. Código Penal comentado.
4a. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 37).
13. Para quem, em princípio, considera ter
havido homicídio consumado. Trata-se do tema dos "cursos causais hipotéticos"
(cf. JESUS, Damásio de. Imputação objetiva. Op. cit., p. 12 e
119).
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