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sábado, 17 de dezembro de 2016

A História de Ronald Opus

As curvas do Direito Penal.


Em 23 de março de 1994, o médico legista examinou o corpo de Ronald Opus e concluiu que a causa da morte fora um tiro de espingarda na cabeça.
O Senhor Opus pulara do alto de um prédio de 10 andares, pretendendo se suicidar. Ele deixou uma nota de suicídio confirmando sua intenção. Mas quando estava caindo, passando pelo nono andar, Opus foi atingido por um tiro de espingarda na cabeça, que o matou instantaneamente.
O que Opus não sabia era que uma rede de segurança havia sido instalada um pouco abaixo, na altura do oitavo andar, a fim de proteger alguns trabalhadores, portanto Ronald Opus não teria sido capaz de consumar seu suicídio como pretendia. Normalmente, quando uma pessoa inicia um ato de suicídio e consegue se matar, sua morte é considerada suicídio, mesmo que o mecanismo final da morte não tenha sido o desejado. Mas o fato de Opus ter sido morto em plena queda, no meio de um suicídio que não teria dado certo por causa da rede de segurança, transformou o caso em homicídio.
O quarto do nono andar, de onde partiu o tiro assassino, era ocupado por um casal de velhos. Eles estavam discutindo em altos gritos, e o marido ameaçava a esposa com uma espingarda. O homem estava tão furioso que, ao apertar o gatilho, o tiro errou completamente sua esposa, atravessando a janela e atingindo o corpo que caía. Quando alguém tenta matar a vítima A, mas acidentalmente mata a vítima B, esse alguém é culpado pelo homicídio de B.
Quando acusado de assassinato, tanto o marido quanto a esposa foram enfáticos ao afirmar que a espingarda deveria estar descarregada. O velho disse que ele tinha o hábito de costumeiramente ameaçar sua esposa com a espingarda descarregada durante suas discussões. Ele jamais tivera a intenção de matá-la. Portanto, o assassinato do Senhor Opus parecia ter sido um acidente; quer dizer, ambos achavam que a arma estava descarregada, portanto a culpa seria de quem carregara a arma.
A investigação descobriu uma testemunha que vira o filho do casal carregar a espingarda um mês antes. Foi descoberto que a senhora havia cortado a mesada do filho e ele, sabendo das brigas constantes de seus pais, carregara a espingarda na esperança que seu pai matasse sua mãe. O caso passa a ser, portanto, do assassinato do Senhor Opus pelo filho do casal.
Agora vem a reviravolta surpreendente. As investigações descobriram que o filho do casal era, na verdade, Ronald Opus. Ele encontrava-se frustrado por não ter até então conseguido matar sua mãe. Por isso, em 23 de março, ele se atirou do décimo andar do prédio onde morava, vindo a ser morto por um tiro de espingarda quando passava pela janela do nono andar. Ronald Opus havia efetivamente assassinado a si mesmo, por isso a polícia encerrou o caso como suicídio.

Como resolver o caso em Direito Penal?
1. Ronald Opus cometeu tentativa de homicídio contra sua mãe (3), extinta, porém, a punibilidade pela sua morte (Código Penal, art. 107, I). (4) Houve erro dolosamente provocado por terceiro com aberratio ictus.
2. Abstraindo as questões da posse anterior da arma de fogo descarregada em relação ao pai de Ronald, se tinha ou não registro, e as ameaças por ele proferidas contra sua esposa, verifica-se que ele (o pai), por "erro de tipo determinado por terceiro" (5), qual seja, o próprio filho, acreditando que a espingarda estivesse descarregada, atirou na sua direção (6), não acertando o alvo (autoria mediata por erro de tipo invencível). Por erro na execução (7), atingiu Ronald, vindo a lhe provocar a morte.
3. Não ocorreu homicídio doloso consumado, levando em conta que na aberratio ictus são exigidos três protagonistas: autor, vítima virtual e vítima efetiva. Assim é que de acordo com o art. 73 do CP, quando, por erro no emprego dos meios executórios, o autor (primeiro personagem), ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender (segundo personagem: vítima virtual), ofende pessoa diversa (terceiro protagonista: vítima efetiva), responde como se tivesse praticado o crime contra aquela (vítima virtual). Ronald não poderia ser ao mesmo tempo autor e vítima efetiva. Seria estranho que, em um homicídio doloso, a mesma pessoa fosse sujeito ativo e passivo.
4. Não teria ocorrido homicídio doloso consumado, uma vez que, de acordo com o art. 73 do CP, o agente responde pelo delito como se tivesse atingido a vítima que pretendia ofender? Como Ronald desejava matar a própria mãe, não seria irrelevante o fato de o projétil ter atingido a si mesmo, pois a lei determina que, no "erro na execução", sejam consideradas as circunstâncias pessoais da vítima virtual (sua mãe) e não da vítima efetiva (ele próprio) (8)? Não deveríamos abstrair a condição de autor da vítima efetiva, dando relevância à sua morte, o que conduziria ao homicídio doloso consumado? Não cremos, pois a regra do art. 20, § 3.º, 2.a.parte, mandada observar pelo art. 73, diz especialmente respeito à dosagem da pena, cuidando de condições e qualidades da vítima virtual.
5. Há outro argumento no sentido da inexistência de homicídio doloso consumado. Ocorre que o princípio do art. 73 do CP, segundo o qual, na aberratio ictus com resultado único, em se tratando de homicídio, vindo a vítima efetiva a falecer, o autor responde pelo fato como se tivesse causado a morte da vítima virtual, não pode conduzir à responsabilidade penal objetiva, em que é suficiente o nexo material. Para que a morte da vítima efetiva seja atribuída à conduta do autor (ou provocador, no caso) a título de dolo, é necessário que haja integrado a esfera de seu conhecimento e vontade. Como diz silva sánchez, tratando do erro na execução com evento único, para que haja responsabilidade por crime doloso consumado é preciso "que o resultado seja fiel reflexo do injusto doloso do comportamento", manifestando-se como "exata realização do risco abarcado pelo dolo e não de outro risco presente na ação do sujeito" (9). O art. 73 do CP deve ser interpretado à luz do art. 18, I e II (10).
6. Quando houve o disparo era absolutamente imprevisível a presença de Ronald na altura da janela. Assim, se a morte da vítima efetiva era absolutamente imprevisível, ausente a imputação objetiva, o autor, no caso o próprio Ronald, não podia ser responsável doloso ou culposo por ela, subsistindo somente a tentativa de homicídio contra sua genitora.
7. A narração dos fatos não traz elementos no sentido de o pai de Ronald ter agido culposamente, o que faria com que respondesse por homicídio culposo. Ele estava habituado a acionar o gatilho da arma descarregada (11). Não consta do episódio nenhuma circunstância que o levasse a desconfiar de que a arma tivesse sido municiada por alguém (12). Além disso, como ficou assentado, era absolutamente imprevisível que, no instante em que houve o disparo, alguém estivesse tentando suicídio, despencando do prédio em queda livre na altura da janela do apartamento (atipicidade do resultado por ausência de imputação objetiva decorrente da imprevisibilidade).
8. Entre nós, o suicídio é impunível (tentado ou consumado).
9.E a presença da rede no 8.º andar? Sem ela, poder-se-ia dizer que o tiro recebido por Ronald não tinha sido causal, nos termos do art. 13, caput, do CP, uma vez que ele morreria da mesma forma (13). Isso, contudo, segundo nossa opinião, é irrelevante, uma vez que entendemos ter ocorrido apenas tentativa de homicídio.Notas
1. Fato fictício. A redação foi alterada pelo autor.
2. Ele havia deixado um bilhete relatando essa intenção.
3. Agravada genericamente a pena em face da circunstância da relação de parentesco (Código Penal, art. 61, II, e). Poder-se-ia apreciar a incidência da qualificadora da vingança como motivo torpe, discutível na jurisprudência (JESUS, Damásio de. Código Penal anotado. 13a. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 401; MIRABETE, Júlio Fabbrini.Manual de Direito Penal: Parte Especial. São Paulo: Atlas, 2000. vol. 2, p. 70).
4. Pressupondo que o fato tivesse ocorrido no Brasil.
5. CP, art. 20, § 2º: "Responde pelo crime o terceiro que determina o erro".
6. Consta da narrativa que o pai de Ronald "estava tão nervoso que, ao puxar o gatilho, errou o alvo, sua esposa". Logo, ele acionou a arma na direção da vítima.
7. Art. 73 do CP (aberratio ictus): "Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela". É como se o próprio Ronald Opus estivesse atirando na mãe.
8. CP, arts. 20, § 3.º e 73, primeira parte, in fine.
9. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Aberratio ictus y imputación objetiva. In: Consideraciones sobre la teoría del delito. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1998. p. 171. Vide sobre o assunto: JESUS, Damásio de. Imputação objetiva. 2.a. ed. São Paulo: Saraiva 2002. p. 150. A morte de Ronald era imprevisível por parte do autor imediato (seu pai), por isso não se relacionando a dolo ou culpa.
10. O art. 18 do CP disciplina o dolo e a culpa.
11. Ele tinha "o antigo hábito de ameaçar a esposa com a arma descarregada".
12. Entendemos tratar-se de erro provocado inevitável, excludente de culpa do autor imediato, o pai de Ronald (DELMANTO & DELMANTO. Código Penal comentado. 4a. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 37).

13. Para quem, em princípio, considera ter havido homicídio consumado. Trata-se do tema dos "cursos causais hipotéticos" (cf. JESUS, Damásio de. Imputação objetiva. Op. cit., p. 12 e 119).

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